terça-feira, 12 de junho de 2012

Dona Arlete

Fotografia de Evandro Souza

À dona Arlete, com amor e gratidão


Há pelo menos cinco anos ensaio contar a história de dona Arlete. Conheci-a numa manhã de domingo, em meio a uma mudança que nos levava, pela primeira vez, a tão sonhada casa própria. Eu tinha nove anos e a imagem desse dia mistura a família sentada no chão da sala, devorando sanduíches na hora do almoço, com a sede que nos obrigou a bater palmas na vizinha.

Dona Arlete veio ao portão com um sorriso largo, simpatia que até hoje acompanha essa mulher de fibra, mãe de quatro filhos, todos eles amigos de infância meus e de meus irmãos.

Com a garrafa de água gelada ela trouxe também a disposição de manter abertos o coração e a casa. Lugares que passei a frequentar com alegria na infância. E uma enorme gratidão na vida adulta.

Éramos, então, três irmãos. E tinha também o Daniel, filho da Isa, que viria a ser a mãe de um de meus irmãos mais novos, o Iaco. Unidos aos filhos de dona Arlete – Débora, Demis, Dermeson e Dulciana – ganhávamos a rua de barro vermelho, com seus buracos e barrancos, os telhados, as janelas, os galhos das goiabeiras, os lugares inventados nos quintais de ambas as casas.

O grupo, inevitavelmente, se dividia em duplas. Ou no caso dos menores, em trio. Mas sempre havia lugar para juntar a turma toda e ainda agregar o resto da molecada, com os vizinhos de baixo e de cima. Era assim quando a gente brincava de esconde-esconde, de manja, de pegar jambo na árvore em frente à casa de dona Arlete.

Ah, aquele jambeiro! Como eu gostava de ver o tapete rosado de suas flores na grama.  Acompanhar, da varanda de casa, os meninos com as baladeiras mirando em vão os frutos mais altos, àqueles que só alcançávamos quando o mais destemido do grupo vencia a altura para agarrá-los com as mãos – é certo que para esta tarefa, sempre havia uma vara com a lata de leite pregada em uma das extremidades. Mas que graça, isso?

Dona Arlete saía de madrugada para o trabalho. Vencia o escuro e a lama para vender balas e bombons aos universitários. Quando voltava, já era tarde da noite. Nesse intervalo, a casa e os meninos ficavam sob a responsabilidade da filha mais velha, Débora. Tínhamos a mesma idade, com uma diferença de meses entre um aniversário e outro.

Débora varria, arrumava, cozinhava e cuidava dos pequenos. Eu costumava ajudá-la nas tarefas. Assim, tínhamos tempo para brincar antes da escola. Enquanto isso, Demis e Tissiano ganhavam o mundo: pulavam no Igarapé São Francisco, empinavam pipas e se metiam em confusão com os outros meninos do bairro. Os menores, graças a Deus, contentavam-se com as bonecas, os carrinhos, as casinhas erguidas com pedaços de pau, papelão ou o que mais a imaginação permitisse. 

Um pouco mais tarde vieram os forrós. Quando começaram, eu e Débora tínhamos uns doze ou treze anos. Seu Manoel, pai dos meninos, não morava mais na casa. E o esteio da família, que sempre foi dona Arlete, reinava com toda a sua alegria e luta.

As festas, com vinis de Luiz Gonzaga, lotavam a sala, a varanda, a cozinha. Os pares dançantes eram alunos da Ufac, servidores, gente que como eu sabia enxergar a beleza, a força, o carinho e a generosidade da dona da casa – acho que não comentei antes, mas dona Arlete sempre nos presenteava com jujubas, pirulitos, chicletes!

Quando voltei ao Acre pela primeira vez, em 1999, a antiga banca de bombons era coisa do passado. Dona Arlete era então dona de uma lojinha na Ufac, onde até hoje vende além das balas, bolachas, refrigerantes, produtos de beleza.  Fomos novamente vizinhas. E nos quatro anos seguintes, as mesmas paredes e colos que abrigaram os medos e choros de minha infância, serviriam de porto para meus casamentos desfeitos, os amores desencontrados e outras desilusões. 

Por esses tempos, a campainha da casa era soada pelos mais de seis cachorros da raça Pinscher (um inferno para os ouvidos!) que dona Arlete cuidava e amava como filhos. As festas já eram organizadas por Dermerson – herdeiro do espírito alegre e benfazejo da mãe. Os vinis foram substituídos por Cds e não tocavam apenas o velho Gonzagão, mas composições de Chico Buarque, Tim Maia. O jambeiro e o gramado não existiam mais. Dona Arlete tinha cansado de juntar folhas e acabou rendendo-se ao cimento, mantendo apenas as plantas dos canteiros, que nos finais de semana ela regava, podava, limpava.

Anos depois, vi com enorme tristeza que a antiga casa de dona Arlete transformara-se num imenso galpão. Por obra do destino, eu não estava na cidade quando a família mudou-se para a nova residência construída no Calafate, com o suor e a coragem da matriarca.

Outro dia nos encontramos e ela me contou a novidade: Dulciana, a filha mais nova, será mãe de gêmeos.  “Minha filha, eu não quero nem esquentar a cabeça com isso agora”, disse-me a futura avó, com um sorriso que misturava medo e resignação.

Mas o que pode temer essa mulher que, vendendo balas, conseguiu criar os quatro filhos? Deu a todos, oportunidade de estudo e ensinou-lhes o valor da honestidade, do caráter, da coragem . Comprou terrenos, fez casas e garantiu, para cada rebento, um teto próprio.  E tudo mantendo a alegria, a esperança, a solidariedade e o amor.

(É possível que eu nunca tenha dito antes, mas devo a ela o exemplo que muitas vezes me manteve em pé, quando tudo a minha volta parecia ruir.)

9 comentários:

Dermeson Lima disse...

QUE HONRA TER O PRIVILÉIO DE REENCONTRAR E APRENDER NESTA REENCARNAÇÃO COM ESSES DOIS SERES ILUMINADOS..ELA E VOCÊ. MUITO GRATO PELA HOMENAGEM, QUE POR IRONIA DO DESTINO ASSIM QUE VOCÊ POSTOU A CRÔNICA EU ABRI.. E LEVEI PARA ELA LER DA JANELA DO QUARTO... NO QUAL, E PASSOU VÁRIOS MINUTOS CONCENTRADA, PARECIA QUE ESTAVA VOLTANDO NO TEMPO... SAIBA QUE TIROU DE MINHA GENITORA VÁRIOS SORRISOS E LÁGRIMAS DE FELICIDADES, COM CERTEZA IRÁ TER BONS SONHOS NESTE INICIO DE MADRUGADA... ENVOLVIDOS NA EMBRIAGUEZ DAS FLORES DE COPO DE LEITE PERFUMAM NOSSOS NOVO QUINTAL (trazidas da antiga casa), AINDA PROTEGIDOS POR SEUS CÃES DE GUARDAS... APESAR DE ESTAREM DESTENTADOS PELA IDADE CONTINUAM A FAZER MUITO BARRULHOS E APAIXONADOS POR SUA DONA ARLETE... AMIGA MUITO GRATO, POIS AS MELHORES HOMENAGENS SÃO FEITAS DESTA FORMA... EM VIDA, SINCERAS E DE CORAÇÃO.... AMOS VCS

Anônimo disse...

Tive o prazer de conhecer Dona Arlete na UFAC, lá pelos anos 90, para em seguida conhecer o Dermeson e o resto da turma.Logo passei a frequentar a casa deles.Somos amigos até hoje. Sempre tive a impressão que aquele local era uma espécie de esquina do mundo: todos se encontravam alí e todos eram bem vindos e acolhidos. Sempre. Ainda estou pra ver pessoas com tanta garra e fé na vida, que jamais deixam de sorrir - mesmo quando o mundo parece desabar diante de si. Dona Arlete, no seu jeito simples e carinhoso de ser, nos passa valores muito caros hoje em dia,como dignidade, integridade, honestidade. Quero agradecer o privilégio de tê-la como amiga e de dizer como isso tem sido enriquecedor na minha vida.Um beijo carinhoso. Klebinho.

Onides disse...

Brava gente, que dúvida?

Anônimo disse...

Dona Arlete é daquelas figurinhas que a gente tem vontade de beijar e abraçar.
Enquanto trabalhei na Ufac ela me vendia uns cigarrinhos fiados. Mas paguei tudo!
Mulher linda!
Que Deus cubra de felixidade essa guerreira. Que seus filhos valorizem muito a mãe que têm.
Abraços Arlete. Muitos!
Leila Jalul

Anônimo disse...

NOSSA! QUE ATITUDE LINDA VÁSSIA! A HOMENAGEM É MERECEDORA, E MUITO!! A ARLETE É SINÔNIMO DE GENTE GUERREIRA, BATALHADORA; MULHER-MACHO!
TENHO ORGULHO DE FAZER PARTE DA VIDA DELA E DOS FILHOS, POR UM LONGO TEMPO, PRINCIPALMENTE DO MEU DRAGÃO MAIS QUERIDO E AMADO, O KBÇA!!! ELE É A PROVA DE Q A LUTA DELA VALEU À PENA. N DESMERECENDO OS OUTROS FILHOS, CLARO!
A ARLETE É EXEMPLO DE QUE QDO. LUTAMOS E N DESISTIMOS DOS SONHOS, ELES SE CONCRETIZAM!!
ARLETE VC É MINHA FONTE DE INSPIRAÇÃO, DESDE O DIA Q TE CONHECI!
VC, TBM, FOI MINHA MÃE, CURANDO OS PORRES Q TOMEI!!! KKKK
TENHO MUITAS SAUDADES DE TODOS. ASSIM Q EU CONSEGUIR AMENIZAR A MATERNIDADE, FAREI UMA VISITA. ELA PRECISA CONHECER A MARIA EDUARDA!!!
VÁSSIA VC FOI PRIMOROSA!!!
BJÃO A TODOS!!
ROSÂNIA

Anônimo disse...

Conheci a Arlete na universidade no periodo da Arueira, tempos depois seu filho veio trabalhar comigo.
è um grande prazer tê-los como amigos.



Ademir Batista

Anônimo disse...

Olá Vassia, compartilho essa mensagem com os amigos acreanos, Dermeson e jaycelene, e espero que chegue também à Arlete.

Daqui de Belo Horizonte, compartilho o seu escrito e digo que uma das melhores coisas que tive de prazer nas três vezes que fui à Rio Branco foi o convívio com a Arlete, por esses motivos de generosidade que você menciona em seu texto.
Outra coisa: como negra, ativista do movimento social negro e pesquisadora, um relato da Arlete me impactou: o racismo de negros em relação a brancos. É sabido que, por questões estruturais relacionados à escravidão de africanos por mais de 3 séculos no Brasil, os ranços de racismo e preconceito são gritantes em relação aos descendentes de africanos.

Não obstante, por vezes assistimos a pessoas negras, por igual estupidez humana, dando o troco e discriminando negativamente pessoas de pele clara.
O relato da Arlete é nos sentido de dizer de uma determinada relação pessoal na sua infância em que uma pessoa negra tinha certa ascendência sobre ela e a maltratava. Gerando assim, uma certa desconfiança e intranquilidade no convívio e a superação dela em um segundo momento ao me conhecer.
Agradeço a confiança dela ao me relatar tal fato de infância que ao mesmo tempo demonstra o seu carinho e amizade para comigo, que é recíproco.
Um abraço em tod@s.
Rosália

Anônimo disse...

COMENTÁRIOS ENVIADOS SOBRE NOSSA AMIGA ARLETE NO SITE DO LIMA COELHO


Linda demonstração de amizade
Comentário Enviado Por: HH Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
Não se discute a excelência do texto. Lindo. Mas a sua foto está arrebentando a boca do balão.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
Oi Vássia, até eu fiquei amando Dona Arlete. Que figuraça!
Comentário Enviado Por: Carla Porto Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
Linda homenagem a quem bem merece
Comentário Enviado Por: Ingrid Daniela Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
Parabéns Vássia. Adorei
Comentário Enviado Por: Rosa Amélia Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
Dona Arlete é exemplo vivo de mulher que não tem medo de trabalhar. Nem as belas palavras da Vássia são suficientes para dizer dessa pequena e corajosa mulher que, chovesse ou fizesse sol, deixava sempre um sorriso estampar-lhe o rosto. Esse sorriso foi e é a sua marca registrada.

Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
Uma mulheragem fenomenal para Dona Arlete
Comentário Enviado Por: Rita Teixeira Em: 19/6/2012


--------------------------------------------------------------------------------
belísisma crônica
Comentário Enviado Por: Zilá Em: 19/6/2012

lEILA jALUL

SLuciana disse...

Homenagem justissima a arlete que nos agraciava com sorrisos, bombons e carinhos na UFAC. Parabéns a Arlete e a autora!