Escher
Para todas que passaram (e às que
virão)
É imprescindível refazer o
caminho. O pensamento me ocorreu tão logo desci do ônibus. Pela primeira vez,
em tantos anos, não me sentia incorporada aos paralelepípedos, ao silêncio, aos
muros caiados e às nuvens do trajeto.
Pisei a calçada, esta que as
solas de meus sapatos conhecem tão bem, como se fosse terra estranha. A rua,
que sempre me pareceu um abraço, surgiu cinzenta e pedregosa como a Luvina de
Rulfo. E a casa, minha casa, uma cidade
inteira em ruínas. Como se os escombros da alma tivessem transpassado meu corpo
para grudar nas paredes, até ontem, acolhedoras.
E tudo em decorrência de um
instante tão fugaz que foi impossível prendê-lo na memória com alguma precisão.
Terá sido um sorriso? Um gracejo? Uma palavra cravada silenciosa nas
reticências que eu, apressadamente, adivinhei segundo meus caprichos?
Como são grandes as interrogações
que cercam a fugacidade do instante... Este ou aquele – eu já não sei! – no
qual provavelmente nasceu a paixão. Digo
nascer por força do hábito. Ou porque se assemelha mais à ideia que guardo das
paixões: vêm disfarçadas em meio à brisa que brinca divertida com os fios que
deixamos soltos na face. É um afago tão sorrateiro e inocente, que subestimamos
seu poder cáustico. Deixamo-nos distrair, fazemos graça, soltamos piruetas,
criamos verbos até então desconhecidos e gargalhamos na cara da gramática.
Sim, senhor: paixão é um bicho
estranho! Tão estranho que costumo esquecer – como é possível? – o poder
corrosivo que dorme na penugem fina de filhote, deste que em um piscar de
olhos, contradizendo todas as teorias da evolução, torna-se fera adulta do dia
para a noite. Nisso, as paixões são como
os pesadelos que nos fazem suar na madrugada, tremer de medo, perder o sono.
Mas tão logo o sol levanta, os esquecemos. E por esquecer, deixamos de cuidar
para que a noite não ofereça novos riscos, novos açoites.
Mas, acredite, leitor há quem
jure ser imune. Há quem diga controlá-lo. Ele, esse bicho fascinante e feroz.
Tenho inveja. Deve ser bom não sentir câimbras no coração. Bom manter o peito sempre largo, as mãos firmes, os olhos confiantes, o passo decidido. Sempre em busca de novas aventuras.
Enquanto eu, toda trôpega, peito
cuíca, coração feito atabaque, sigo com a premência de refazer os caminhos, dia
e noite, para que a calçada, a rua e a casa tomem novamente aos meus olhos a
forma do que nunca deixaram de ser: meu mundo.
Dizem que quando uma borboleta
voa perto da gente é a alma de um parente, um amigo, alguém que partiu e sente
saudades. Entrou uma aqui, agora. E enquanto escrevo essas linhas, ela balança
as asas em um movimento confuso entre a luz do abajur e a tela do computador.
Que alma amiga veio me visitar?
Sem resposta, permaneço
acompanhando o balé aéreo da pequena e escura borboleta. O que me faz ouvir o
vento lá fora.
Meu olhar atravessa, então, a
porta escancarada para a noite. Passeia pela grama recém-cortada, quase toca as
flores da dama-da-noite, segue até a buganvila que plantei no último Natal, e alcança
os galhos mais altos da palmeira que dança. Dança indiferente ao lamento de
minha cuíca ou atabaque.
Dança ao vento. Como em breve, e esquecida, dançarei também.
Dança ao vento. Como em breve, e esquecida, dançarei também.
7 comentários:
voltou… voltaram...
Lindo, Vássia! Paixão é esse estado apavorante, não? E quase sempre é o desejo de apaixonar-se por si mesma, Viva o retorno de "Toda Quinta"! Um beijo!
Qualquer coisa que disser será pequena.
Renasceu o Toda Quinta, que morreu numa quarta e renasceu numa terça. Que rufem os tambores e os atabaques do teu coração de mulher poeta.
Só posso emitir um comentário se tiver alguém por perto para ver essa merda que diz que a gente não é um robô. Não sou robô (?): sou cega, caralho!
Sim, Marilia, este o cerne do desejo: a paixão por si mesmo (e como dói!)... Leila, querida, que o universo dance e vibre junto com os tambores.
Voltaram, Gil?
sim, as Vássias...
Ah, Gil...Pensei que os leitores voltariam! As Vássias nunca me deixaram. Que venham, então, com as Vássia, os benditos leitores!
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