terça-feira, 27 de maio de 2014

De cuícas e atabaques

Escher

 Para todas que passaram (e às que virão)

É imprescindível refazer o caminho. O pensamento me ocorreu tão logo desci do ônibus. Pela primeira vez, em tantos anos, não me sentia incorporada aos paralelepípedos, ao silêncio, aos muros caiados e às nuvens do trajeto.

Pisei a calçada, esta que as solas de meus sapatos conhecem tão bem, como se fosse terra estranha. A rua, que sempre me pareceu um abraço, surgiu cinzenta e pedregosa como a Luvina de Rulfo.  E a casa, minha casa, uma cidade inteira em ruínas. Como se os escombros da alma tivessem transpassado meu corpo para grudar nas paredes, até ontem, acolhedoras.

E tudo em decorrência de um instante tão fugaz que foi impossível prendê-lo na memória com alguma precisão. Terá sido um sorriso? Um gracejo? Uma palavra cravada silenciosa nas reticências que eu, apressadamente, adivinhei segundo meus caprichos?

Como são grandes as interrogações que cercam a fugacidade do instante... Este ou aquele – eu já não sei! – no qual provavelmente nasceu a paixão.  Digo nascer por força do hábito. Ou porque se assemelha mais à ideia que guardo das paixões: vêm disfarçadas em meio à brisa que brinca divertida com os fios que deixamos soltos na face. É um afago tão sorrateiro e inocente, que subestimamos seu poder cáustico. Deixamo-nos distrair, fazemos graça, soltamos piruetas, criamos verbos até então desconhecidos e gargalhamos na cara da gramática.

Sim, senhor: paixão é um bicho estranho! Tão estranho que costumo esquecer – como é possível? – o poder corrosivo que dorme na penugem fina de filhote, deste que em um piscar de olhos, contradizendo todas as teorias da evolução, torna-se fera adulta do dia para a noite.  Nisso, as paixões são como os pesadelos que nos fazem suar na madrugada, tremer de medo, perder o sono. Mas tão logo o sol levanta, os esquecemos. E por esquecer, deixamos de cuidar para que a noite não ofereça novos riscos, novos açoites.

Mas, acredite, leitor há quem jure ser imune. Há quem diga controlá-lo. Ele, esse bicho fascinante e feroz.

Tenho inveja. Deve ser bom não sentir câimbras no coração. Bom manter o peito sempre largo, as mãos firmes, os olhos confiantes, o passo decidido. Sempre em busca de novas aventuras.

Enquanto eu, toda trôpega, peito cuíca, coração feito atabaque, sigo com a premência de refazer os caminhos, dia e noite, para que a calçada, a rua e a casa tomem novamente aos meus olhos a forma do que nunca deixaram de ser: meu mundo.

Dizem que quando uma borboleta voa perto da gente é a alma de um parente, um amigo, alguém que partiu e sente saudades. Entrou uma aqui, agora. E enquanto escrevo essas linhas, ela balança as asas em um movimento confuso entre a luz do abajur e a tela do computador.

Que alma amiga veio me visitar?

Sem resposta, permaneço acompanhando o balé aéreo da pequena e escura borboleta. O que me faz ouvir o vento lá fora.

Meu olhar atravessa, então, a porta escancarada para a noite. Passeia pela grama recém-cortada, quase toca as flores da dama-da-noite, segue até a buganvila que plantei no último Natal, e alcança os galhos mais altos da palmeira que dança. Dança indiferente ao lamento de minha cuíca ou atabaque.

Dança ao vento. Como em breve, e esquecida, dançarei também. 


7 comentários:

Gil Maulin disse...

voltou… voltaram...

Marilia Kubota disse...

Lindo, Vássia! Paixão é esse estado apavorante, não? E quase sempre é o desejo de apaixonar-se por si mesma, Viva o retorno de "Toda Quinta"! Um beijo!

Jalul disse...

Qualquer coisa que disser será pequena.
Renasceu o Toda Quinta, que morreu numa quarta e renasceu numa terça. Que rufem os tambores e os atabaques do teu coração de mulher poeta.
Só posso emitir um comentário se tiver alguém por perto para ver essa merda que diz que a gente não é um robô. Não sou robô (?): sou cega, caralho!

Vássia Silveira disse...

Sim, Marilia, este o cerne do desejo: a paixão por si mesmo (e como dói!)... Leila, querida, que o universo dance e vibre junto com os tambores.

Vássia Silveira disse...

Voltaram, Gil?

Gil Maulin disse...

sim, as Vássias...

Vássia Silveira disse...

Ah, Gil...Pensei que os leitores voltariam! As Vássias nunca me deixaram. Que venham, então, com as Vássia, os benditos leitores!