Bert Hardy
Afasto-me do burburinho, dos
lero-leros. Das distrações que desencavam, em mim, a fome pelos equívocos. Vejo
morrer, sob a poeira invisível dos simulacros, a doce lembrança do cheiro alecrim
e a rota incerta das pequenas mãos, a sapiência da língua.
Tudo ao redor vai se refazendo no
silêncio: escuto, então, o brinquedo da filha da vizinha caindo no chão; a
cadeira arrastada; a tampa da panela que arranha o fogão; as rodas dos carros
roçando o asfalto molhado; as gavetas abrindo e fechando; o bocejo do morador
ao lado; um ou outro passarinho clamando colo quente.
Há em mim agora uma ausência completa.
Uma coleção de interrogações penduradas nos galhos das jaqueiras e mangueiras que
trouxe da infância e plantei na alma. Fazem sombra, as árvores. Em dia de sol,
deito-me esquecida do mundo sob elas.
Lá no mar, um barco ancorado
desencava memórias. Não é de pescador, não é turístico. De onde vem esse barco?
Para onde vai? Meus olhos estirados até ele, como se esse prolongamento fosse o
bastante para que eu me sentisse a bordo. Quanto tempo mais?
E então as cigarras pressentem a
brecha das nuvens e cantam uníssonas. Os pássaros não se animam
a acompanhar. Devem ter cochilado, aninhados na herança deixada pela noite que
se foi.
Tudo é branco lá fora.
Tudo é branco lá fora.
Um comentário:
Parabéns Vássia, você continua essa pessoa sensível, que consegue captar das mais singelas cenas e movimentos do cotidiano a inspiração para escrever lindamente. Me identifiquei e me vi logo no início dessa crônica. "Afasto-me do burburinho, dos lero leros. Das distrações que desencavam em mim, a fome pelos equívocos". Essa sou eu também, tentando me livrar dos equívocos.
Grata pela bela articulação de palavras e ideias.
Bjo
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