quinta-feira, 5 de março de 2015

Palimpsesto

Marcos Vicentti (Alagação Acre/2015)

Minha alma amanheceu empoeirada. Olho ao redor e busco arrumar a casa, como se a tarefa fosse o bastante para dar conta das confusões do espírito: aspirador de pó, lençóis limpos, louça lavada, lixo recolhido, mesa organizada.

Mas a despeito do tempo gasto e dos cuidados, resulta inútil o ingênuo esforço.

Busco então olhá-la com o mesmo amor que derramo nas filhas. Pego-a no colo e envolvo-a num estreito abraço. A alma treme. E tenho a impressão de que irá desabar. “Não faça isso, querida”, sussurro lembrando-lhe de que esta é uma prerrogativa dos que contam com a segurança de um porto – nau sem porto, minha alma. Nau sem pátria.

Tão profundos seus olhos. Vejo neles a cor barrenta dos rios, e agora inúmeros balseiros – quantos soluços emaranhados nessas ilhas de esquecimento? Quantos troncos retorcidos pela ausência? – em rota de colisão.

 “Mergulhe não, moça” avisou-me, certa vez, a velha senhora. E deste então dei respeito ao medo. Mas e ela, o que sabe das Iaras?

Da janela, o mar e os telhados assombram o que a alma cala: tudo é rio e cheia.

(Posso morrer engasgada com as palavras. Ou alagada)

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