segunda-feira, 6 de abril de 2015

Carta a um leitor

Charlie Hamilton James

Você que às vezes me lê e que ao catar as palavras me descobre um tanto nua.  E que talvez ria, comigo; e que talvez chore, comigo – julgando, no silêncio da sua cadeira de balanço, saber de mim. Ah, quisera eu repartir-me assim! Mas há nos bosques sombras que desconheço. Sinto-as em dias como o de hoje: as garras úmidas grudadas em meu corpo enquanto lá fora tudo é luz e segue bonita a vida.

E eu já quis prescindir de você. Mas vives, desconfio, nesse mundo subterrâneo onde perambulam os meus fantasmas. E és feito da mesma matéria que os medos sem rosto ou cheiro (não sei de onde essa necessidade de cultuar os mortos, de prolongar uma existência cuja missão parece ser a da tormenta).

A vida podia ser mais simples. Despertar cedo, lavar a louça, varrer a casa, fazer o almoço. Mas ao invés disso, minha alma pede certa desordem. Então perco a hora, deixo a poeira por mais um dia no piso vermelho, esvazio os copos limpos do armário e peço uma marmita. Em seguida vem a necessidade de me redimir. O que me leva, invariavelmente, a faxinar a casa (como se assim eu pudesse limpar o limo de minhas lembranças).

Olho então minhas filhas e fico imaginando o que de mim permanecerá nelas. Meu abraço é tão largo e quente! Lembrarão, elas, disso? E sinto o desejo de contar-lhes dos descaminhos, mas a ternura e o amor não deixam. Então as sufoco com meus beijos, minhas desculpas derramadas em bilhetes que se acumulam na geladeira: que espécie de mãe é você?

O mundo parece tão vasto. Busco, em vão, encontrar palavras para enfeitar a tristeza. E agarro do silêncio para temperar as vírgulas fora de lugar. As reticências... Como promessas que nunca se cumprem. E qual será o meu fim? Para onde, afinal, tenho caminhado? Eu gostaria de dizer que ando em direção daquela casinha de madeira, pintada de verde e vermelho, cravada entre o mar e a montanha.

Mas a verdade é que não sei do caminho.

E enquanto o sol se desnuda nesse dia cheio de brisa e céu azul, enquanto as garras crescem em força e estão a um segundo de me sufocar, enquanto dormem minhas filhas, enquanto ronrona meu gato, me deixo morrer um pouquinho na fumaça do cigarro. 

2 comentários:

Eduardo Lara Resende disse...

Vássia: não é sempre que leio V., mas quando o faço, gosto muito. Esse seu texto de hoje é transparente e levíssimo, mesmo tendo sangrado as profundezas de onde emergiu.
Abraço grande.

Anônimo disse...

ALMA-IRMÃ, DAQUI DA MINHA CADEIRA DE BALANÇO JÁ QUEBRADA, SINTO-ME DENTRO DOS SENTIMENTOS QUE FAZES EXPRESSOS NESTE QUINTA NA SEGUNDA.E DIVIDO GARRAS, SOMBRAS E DORES.E A NUDEZ, CLARO!
PROCUREI UM CHÁ DE CAMOMILA PARA ME LIVRAR DOS MARES E DAS TURBULÊNCIAS, AINDA QUE LÁ FORA O SOL É DE OFUSCANTE CLARÃO.
AMANHÃ, PARA NOSSOS DELÍRIOS, TALVEZ UMA CHUVA DERRAME LUZ E NOS DÊ AS CLARAS RESPOSTAS QUE BUSCAMOS.
leila jalul