quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Cheiro de manga, madeira e rapadura



Primeiro foi o cheiro de manga. Chegou em meio à tarde, invadindo narinas e cenas adormecidas.Carregou-me para longe, a quintais sombreados por jaqueiras, jambeiros e mangueiras. Vi-me brincando na terra.

“Larga isso, menina!”. Ouço a voz dela lá longe, deve estar pregada no batente de madeira da escada que separa o terreno da cozinha – e as panelas penduradas por pregos na parede, o pano sob a pia de cimento, o vapor dos vasilhames fumegando no fogão. É doce de jaca? Deve ser. Todos os dias ela faz. Quando não, creme de cupuaçu. É bom... Tão bom quanto o calor do mingau quentinho de banana com canela.

Não é que me lembrei também do doce no palito? E da raspadinha na esquina do Colégio Meta, bem na frente do rio: “quero a de creme!”. Dia de sábado tinha espuma do mar. Era só ouvir a voz rouca do vendedor “Olha a espuma, espuma, espuuuuma do mar!”, e sair correndo para a rua.

Tempos bons aqueles.

Hoje o que vejo da janela embaçada pelo vidro são espasmos da tarde. Aqui e acolá uma nuvem ameaça brincar de monstro. Não há muito tempo para a imaginação.

Mas como dizer isso a ele? Sem resposta, sou novamente carregada a outros rincões.

Desta vez sinto a madeira. Tábuas que guardam sonhos que muitos não lembram ter tido.  Vem dessa casa antiga, cravada no coração da cidade. “Pois não sentes o cheiro?”, pergunto ao amigo. Ele não sente. E eu, recolhida ao espanto ingênuo, me deixo inebriar pelas lembranças, algumas, sem dono.

Na boca da noite, durante o trajeto para casa, chega o cheiro de rapadura. A saliva transborda. Há um leve tremor em minhas mãos: quero compreender o que me diz o universo e suas brincadeiras.

Mas nada sei dele hoje, além dos cheiros da infância que resolveram me visitar. 


4 comentários:

lu gomes disse...

As lembranças da infância nos acompanham por toda a vida. Que bom seria se fossem sempre boas!

Carlos Baldner disse...

Marcel Proust "EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO"Faz o menino frágil asmático e efeminado encontrar mais do q a geografia, as memórias olfativas e gustativas,O passado não volta mas é assegurado pela memória, madeleines ou mingal de banana são lembranças queridas e inefáveis.Vejo q vc também encontrou a delicia da infancia. Cuidemos ,porém q não seja o cotidiano carreado e culpado por não ser passado.

Anônimo disse...

Lindo texto, querida!
Já está no site colorido por imagens de belíssimas mangas que caem aos borbotões.
Um abraço mais carinhoso que os de antes e um cheiro mais cheiroso que o cheiro das rapaduras. Adoro!!!
Leila Jalul

Anônimo disse...

Amiga, estes são os comentários deixados no site do Lima Coelho. Abraços grandes.


Escrito de alma. Parabéns Vássia
Comentário Enviado Por: Mariana Rodrigues Em: 26/1/2012


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Adorei Vássia
Comentário Enviado Por: Irene Romero Em: 26/1/2012


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Beleza de crônica. Feliz 2012 Vássia
Comentário Enviado Por: Betina Em: 26/1/2012


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Ler a Vássia, acreditem, me deixa cheia de dedos.
Adoro essa menina!
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 26/1/2012


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Intimista e de memórias
Comentário Enviado Por: Lenir Sacramento Em: 26/1/2012


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Um texto espetacular
Comentário Enviado Por: Depaula Em: 26/1/2012


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A crônica de Vássia lembra a madalena de Proust. É uma escritora de verdade.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 25/1/2012